terça-feira, 30 de novembro de 2010

O menino dos cartuchos por Paulo Ghiraldelli


Durante o final de semana em que ocorreu a invasão dos locais onde estariam os traficantes do Rio, a única imagem de TV realmente digna do nome de jornalismo, entre todos os canais, foi a do menino sem camisa, descalço, catando cartucho no chão da favela não para brincar – o que já seria trágico – mas para vender no ferro velho. Sem dúvida, essa imagem não era para ser mostrada. Passou despercebida por algum editor, junto com o material de reportagem de um jornalista e de um cinegrafista que, contra a onda, ainda resolveram mostrar antes a realidade que a pseudo guerra entre mocinhos e bandidos que todo mundo mostrou.

Na figura do menino, estava a essência da favela e a base do que foi o tráfego na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão, e do que ele voltará a ser, senão ali, em algum lugar perto. Ao contrário do que mostra a TV, não é o consumidor que cria o tráfego e o crime, nem mesmo é o traficante. O que cria o tráfego é o fato da droga ser ilegal e, junto disso, a causa que leva aquele menino a estar ali, procurando resto de bala para vender: falta de oportunidade na vida, inexistência de empregos competitivos e a falta de escola que tenham bons professores e que sejam atrativas,. Carência completa de assistência à infância.

No discurso oficial, o que se tem é agradecimento e mais agradecimento. A população dos locais invadidos do Rio, por apoiar a polícia, agora é louvada. A polícia e a Marinha são louvados. O BOPE é agradecido por proporcionar o “Elite da Tropa 3 ao vivo”. As imagens com gente das favelas pedindo paz viram passaporte para o Céu, na ânsia que os empresários e políticos do Rio de Janeiro têm de não comprometer os investimentos que já começaram para as Olimpíadas e Copa do Mundo. Mas, o menino sem camisa, sujinho, que vai levar para o ferro velho o resto das balas, não dá prestígio para ninguém. Pobre é bom aparecer na TV louvando o Estado, não reivindicando e muito menos mostrando em que pontos o Estado ainda falha e os cantos em que governo não dá a atenção devida. Pobre é bom quando é mostrado pendurado no telefone e dedando às vezes seus próprios parentes para a polícia.

O menino disse ao repórter que poderia ganhar talvez de cinco a vinte reais com os cartuchos. Deve ter levado um pouco mais de uma hora para catar aquilo. Portanto, tiraria bem menos que o tráfico lhe pagaria para transportar a droga. Tiraria mais ou menos o preço do “boquete” na rua, feita por prostitutas semi-profissionais. Todavia, sua perspectiva de ganho é bem maior do que uma professora, pois esta recebe em torno de sete reais a hora de aula – é isso que o Brasil paga para quem trabalha na escola pública. Quem iria dar aula na favela por sete reais? Alguns abnegados e, certamente, a escória daqueles que, de algum modo, conseguiram um diploma de professor.

A realidade do Rio de Janeiro não é diferente da de outras cidades. Aliás, o Rio nem é mais violento que outras capitais. Mas, quem faria um filme em Vitória ou Teresina? É preferível fazer no Rio. Tiros perto da praia e nos complexos de favela são filmes que podem concorrer ao Oscar. Não estou dizendo que “Tropa de Elite 2” é um filme mistificador, “meramente comercial”. Ao contrário. É um filme altamente esclarecedor e verdadeiro, assim como o livro Elite da Tropa. Todavia, as imagens desse tipo de filme e da TV preferem o cenário do Rio, ainda que o Brasil esteja, por inteiro, carunchado antes pela corrupção de órgãos estatais – e a polícia é um desses órgãos – que realmente infestado de bandidos. O filme mostra o que tem de mostrar corretamente. Mas, o cenário é realmente comercial. Caso exista uma espetáculo que ganhou passaporte para ser apresentado, é o da “guerra contra o tráfico”. É a parte não importante do filme e, enfim, é a parte que a TV mostrou no final da semana – nas ruas. É o que dá mais “ibope”.

O interessante seria ver, daqui a um mês exatamente, o governador do Rio vir à TV para dizer que, junto com as tais agora tão famosas e salvadoras UPPs, os lugares “recuperados pelo Estado” terão frentes de empregos competitivos e boas escolas, e que os professores dali terão maiores salários que em qualquer outro lugar, relacionados a um aumento salarial geral significativo. Seria interessante, junto disso, ver o governador anunciar também a ampliação dos salários dos policiais e, enfim, dizer seus planos a respeito de uma triagem dos bons e dos corruptos. Seria interessante ver o governo Federal, junto, falar a respeito da impunidade em relação aos políticos envolvidos nos esquemas de segurança que lucram por serem responsáveis antes pelo deslocamento do tráfico do que pela solução do problema. Aí sim estaríamos realmente usando da motivação da Copa e das Olimpíadas para um rumo certo. Esse tipo de ação mostraria um governo, no plano estadual e federal, disposto a fazer justiça ao que há de humano na favela, espelhado no menino sem camisa que virou uma ponta nas reportagens.

Agora, o resto, a briga de mocinho e bandido regado por demagogias de plantão que assisti neste final de semana em discursos oficiais, todos nós podemos dispensar. Afinal, é isso que é a verdadeira droga – é esta que realmente vicia e desencaminha a sociedade.

© 2010 Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ

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